A medicina molecular tem ajudado a tornar o conhecimento sobre o
câncer muito mais claro e passível de intervenções mais seletivas e
eficazes. A observação é de Gilberto Schwartsmann, professor da
Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) e médico oncologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
“A pesquisa molecular abriu boas oportunidades para a descoberta de
novos medicamentos contra o câncer. Até algumas décadas atrás, a tônica
na busca de novos medicamentos anticâncer foi centrada na procura de
drogas com efeito antiproliferativo. Com isso, não apenas as células
malignas eram afetadas, mas também os tecidos normais que se renovam
rapidamente”, disse Schwartsmann à Agência FAPESP.
Em consequência, segundo o pesquisador, as chamadas quimioterapias
tiveram como característica a baixa seletividade pelo câncer e a
ocorrência de efeitos tóxicos em tecidos normais com alta taxa de
renovação, como a raiz dos pelos, a medula óssea e as células de
revestimento.
Com as descobertas sobre a genética do câncer e o entendimento dos
defeitos moleculares responsáveis pelo seu surgimento, tornou-se
possível a identificação de vários defeitos moleculares envolvidos na
gênese de alguns tipos de câncer.
“Isso proporcionou que fossem desenvolvidas estratégias de tratamento
mais racionais e seletivas, dirigidas à correção de defeitos
moleculares específicos. Ou seja, hoje a tônica é identificar um alvo
molecular relevante, entender a função dos genes alterados, identificar
as proteínas anormais resultantes destes defeitos genéticos, e buscar,
com isso, novas alternativas terapêuticas que visem corrigir o impacto
destes defeitos moleculares na regulação do crescimento celular”, disse
Schwartsmann.
Dentre as estratégias mais utilizadas nas duas últimas décadas para
interferir nos defeitos moleculares associados à gênese de tumores
malignos, destacam-se a produção de anticorpos monoclonais que possam
bloquear a sinalização – por receptores situados na superfície da célula
tumoral e que confiram função anormal ou por meio de pequenas moléculas
que possam inibir enzimas específicas que fazem parte dessas cadeias de
sinalização de crescimento anormal no interior da célula maligna.
“Essas pequenas moléculas podem ser usadas em muitos casos por via
oral – portanto de forma muito mais tranquila do que quimioterapias
tóxicas injetáveis. Entretanto, para que essas estratégias tenham alguma
chance de êxito, é fundamental que os alvos moleculares escolhidos
sejam relevantes para o crescimento do tumor. De nada adianta interferir
em um alvo que não seja importante para o crescimento das células
malignas”, explicou Schwartsmann.
Segundo ele, para se chegar a um remédio eficaz e translacional em
oncologia, é preciso primeiro identificar um alvo de interesse e
confirmar a sua relevância biológica em modelos experimentais. Apenas
após essas etapas estarem bem definidas é que se inicia a busca de
substâncias que possam modular este mesmo alvo molecular.
Do contrário, perde-se tempo com abordagens ineficazes. Um exemplo de
sucesso dessa estrategia é o desenvolvimento do anticorpo trastuzumab,
usado em um tipo de câncer de mama que expressa receptores anormais
denominados HER-2.
Pacientes que expressam essa característica nas células tumorais têm a
metade do tempo mediano de sobrevida em relação às demais pacientes com
câncer de mama. Essa alteração está presente em cerca de 30% dos casos
da doença e esses pacientes se beneficiam significativamente com o uso
deste anticorpo monoclonal.
“Quando se quer desenvolver uma droga eficaz, o alvo tem que ser
relevante do ponto de vista biológico. O que definiu o seu sucesso nesse
caso específico foi o fato de que se pode observar que as mulheres que
apresentavam em suas biópsias a amplificação do gene HER2 viviam a
metade do tempo das outras (três anos no lugar de seis). Daí, a validade
de se buscar drogas que pudessem interferir no HER2, chegando então ao
trastuzumab. É claro que ele só interfere nesse receptor e apenas
funciona no subgrupo que apresenta esta característica”, disse
Schwartsmann.
De acordo com o professor ds UFRGS, esta estratégia dirigida à
correção de defeitos moleculares específicos no câncer traz como
consequência a idenficação de estratégias para grupos bem definidos de
pacientes. Ou seja, torna os tratamentos cada vez mais personalizados.
Essa é a base do que se chama hoje de medicina personalizada, na qual
são identificadas as características moleculares da doença naquele
indivíduo específico e as suas características moleculares com relação
ao metabolismo ou tolerância individual a medicamentos.
“Com isso, poderemos escolher intervenções mais específicas e com a
melhor segurança possível para cada indivíduo a ser tratado. Mas há
muito ainda a ser pesquisado. Temos remédios interessantes para um
número cada vez menor de pessoas, porque os alvos estão mais seletivos”,
disse o pesquisador durante o Simpósio de Medicina Translacional,
realizado em 29 de novembro na Academia Brasileira de Ciências (ABC), no
Rio de Janeiro.
Outro exemplo de tratamento citado por Schwartsmann foi o da leucemia
mieloide crônica, tumor caracterizado pela presença do chamado
cromossomo Filadélfia, resultante da translocação de dois cromossomos (9
e 22).
Essa translocação resulta na produção de uma proteína anormal, com
várias propriedades associadas à malignidade da doença. Em consequência,
foram testados vários inibidores da função desta proteína anormal.
A partir de 2001, com o surgimento do medicamento chamado imatinibe
(que inibe a proteína anormal), pode-se oferecer mais eficácia e muito
mais segurança e conforto ao paciente, pois ele pode ser administrado
por meio de comprimidos.
“Isso representa um avanço inquestionável em relação aos tratamentos
quimioterápicos injetáveis e menos ativos utilizados no tratamento
destes pacientes no passado”, disse Schwartsmann. Novas abordagens para o
tratamento do melanoma – tipo de câncer de pele mais grave – também
foram lembradas pelo médico.
“Depois de várias décadas sem o surgimento de um único medicamento
que aumentasse em um dia a sobrevida dos pacientes sintomáticos com
doença avançada, várias novas drogas têm sido desenvolvidas nos últimos
dois anos. Essas drogas mostraram atividade isoladamente e estão sendo
combinadas em estudos clínicos, com resultados preliminares muito
promissores, e respostas muito superiores em relação aos tratamentos
convencionais do passado, que não tinham impacto claro no tempo e
qualidade de vida dos pacientes”, disse.
Alternativas promissoras
Schwartsmann ressalta que as novas drogas têm resposta em torno de
40% a 50% de eficácia. Uma delas, o vemurafenib, atua bloqueando a
mutação na proteína B-RAF, causadora dos melanomas. Outra, a ipilimumab,
indicada para o tratamento do melanoma metastático, estimula o sistema
imunológico a atacar e matar as células cancerosas.
“Na realidade, mudamos o paradigma. Hoje em dia, em câncer, passamos a
fazer tratamento com drogas-alvo dirigidas a características do tumor
de cada paciente, ativas em alvos relevantes naquele indivíduo
específico”, avaliou Schwartsmann.
Outras alternativas promissoras destacadas são os chamados
imunoconjugados, que associam um anticorpo – capaz de se ancorar
seletivamente nas celulas tumorais – e um agente quimioterápico ou
radioterápico.
Com isso, leva-se a uma substância com ação antitumoral direto ao
local em que está o tumor. Há exemplos de sucesso em câncer de mama, com
a conjugação do trastuzumab com quimioterápicos e de anticorpos
anti-CD30 e quimioterápicos em doença de Hodgkin e linfomas.
Outra estratégia, de acordo com Schwartsmann, consiste na modulação e
ampliação da resposta de reconhecimento de células malignas pelo
sistema imunológico do paciente.
“Pesquisadores do Massachusetts General Hospital, em Boston, puderam
aumentar significativamente o reconhecimento imunológico de células
tumorais por meio do uso de anticorpos monoclonais que bloqueiam
proteínas que o tumor produz e lhe propiciam uma forma de escape e
tolerância por parte de nosso sistema imunológico”, afirmou o professor.
“Com isso, o organismo passa a atacar o tumor com mais eficiência.
Essa estratégia tem produzido respostas em muitos tipos de câncer
refratário aos tratamentos convencionais. É uma das áreas mais
promissoras para os próximos anos" destacou Schwartsmann.
O pesquisador salienta que o conhecimento crescente da complexidade
dos defeitos moleculares do câncer deixa claro que as intervenções
médicas em fases tardias da doença são fadadas ao insucesso, uma vez
que, em razão de sua instabilidade genética, o tumor adquire
progressivamente uma maior capacidade de se defender das intervenções
médicas utilizadas, ou seja, produz mecanismos de resistência aos
medicamentos.
“A melhor estratégia para se resolver o problema do câncer seria
sobretudo a sua prevenção e detecção precoce, quando as intervenções
médicas têm melhor chance de corrigir de forma permanente os defeitos
moleculares presentes no tumor”, disse Schwartsmann.
Fonte: Agencia FAPESP
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